Por Telmo Lemos Filho

O sistema jurídico de representação dos entes federados foi regulado quando da edição da Constituição Federal de 1988. O constituinte, em boa hora, ciente de que a tradicional tripartição dos Poderes não foi suficiente para evitar que o país acabasse por viver um longo período de regime autoritário, optou por criar uma nova estrutura na organização estatal, no mesmo nível tópico dos Poderes, a qual denominou de funções essenciais à Justiça. A criação destas estruturas em sede constitucional objetivou dotar a institucionalidade brasileira de outros organismos de proteção do Estado Democrático de Direito. A constitucionalização do Ministério Público, da Advocacia Pública, da Advocacia e da Defensoria Pública veio para melhor instrumentalizar o Estado naquilo que ele tinha fracassado no período imediatamente anterior: a preservação dos valores republicanos e democráticos.

No que concerne à Advocacia Pública, em que pese o constituinte ter sido econômico no regramento, a então nova ordem constitucional deu tratamento diverso à União e aos estados e DF. Para União instituiu um novo órgão, a Advocacia-Geral de União, que viria para substituir as atribuições de representação da União em juízo, até então exercidas pelo Ministério Público Federal. Optou, ainda, por preservar a representação da Fazenda Nacional no órgão então já existente, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional – PGFN, mantendo-o com caráter de permanência. Já nos estados e no Distrito Federal a opção constitucional foi outra, qual seja, a de concentrar a representação judicial e consultoria jurídica dos entes federados em um único agente: os Procuradores dos estados e do Distrito Federal. Às estruturas existentes antes da Constituição de 1988, que atuavam paralelamente às PGEs, atribuiu caráter de sobrevivência transitória, resguardando competências no artigo 69 do ADCT. A própria Advocacia-Geral da União reconhece o tratamento constitucional diverso para as duas esferas da federação, consoante expresso nas manifestações realizadas nas ADIs 5107, 5109 e 5215.

Decorrência lógica desta opção constitucional é que se afirma que à Advocacia Pública Estadual foram atribuídas as características de unicidade e exclusividade. Unicidade, porque somente aquele órgão pode representar judicialmente e prestar consultoria jurídica ao ente federado e exclusividade, porque esta competência constitucional é exclusiva dos Procuradores dos estados e do DF. Neste sentido, as decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria. Afirma-se, então, que o Constituinte Originário não só idealizou, como instituiu um sistema orgânico único para a representação judicial e consultoria jurídica dos entes federados, incluídos, por serem integrantes do núcleo central da Administração Pública e realizadoras de atividades próprias de serviço público, a administração direta e as autarquias e fundações públicas.

No contexto constitucional de 1988, os Estados e o DF agiram para a formatação de suas estruturas jurídicas no molde adotado. Assim, a representação judicial e a consultoria jurídica das autarquias e fundações públicas foram sendo consolidadas como de competência exclusiva das Procuradorias-Gerais dos Estados e do DF, o que é respeitado e adotado na grande maioria dos entes federados, como, por exemplo, ocorre, dentre outros, nos Estados do Rio Grande do Sul, de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Minas Gerais.

Recentemente foi apresentada na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional 80/2015, que busca alterar esta definição constitucional originária e impor aos entes federados, inclusive municípios, a criação de estruturas jurídicas para o atendimento das autarquias e fundações públicas.

A proposta, no entanto, sequer deve ter sua tramitação admitida, já que viola cláusula pétrea da Constituição Federal, qual seja, a forma federativa de Estado (artigo 60, parágrafo 4º, I, da CF/88). A federação brasileira admite a atribuição de competências materiais de políticas públicas aos entes federados subnacionais, inclusive com repercussão na estrutura de financiamento do Estado Brasileiro, mas não convive com a imposição da forma de realização destas mesmas políticas. Ao contrário, aos Estados é deferido expressamente o dever de se organizar, tendo de observar apenas os princípios da Constituição Federal (artigo 25). Diferentemente da determinação constitucional que prevê a Advocacia Pública como órgão central de preservação jurídica do ente federado, portanto estrutura fora dos Poderes e integrante do sistema denominado de funções essenciais à Justiça, a imposição de outros organismos viola frontalmente o pacto federativo firmado em 1988.

A unicidade e exclusividade da representação judicial e consultoria jurídica dos entes federados é fundamento de proteção da estrutura estatal, evitando litígios entre as estruturas administrativas, sejam da administração direta, sejam dos entes descentralizados. Cogitar a possibilidade de litígio judicial entre a administração direta e os entes autárquicos é desconhecer que a finalidade da administração pública é única e a descentralização da atividade uma opção meramente administrativa e de atendimento a demandas de momento. Tanto é assim que várias entidades da administração indireta são extintas e outras tantas são criadas por todos os entes federados.

Ao contrário do artigo 132, que foi introduzido no texto original da Carta Constitucional, tendo sofrido reforma superficial quando da edição de Emenda Constitucional 19/1998, a proposta apresentada altera substancialmente a organização dos entes federados, impondo a criação de estruturas permanentes (Procuradoria das Autarquias e/ou Fundações) para atender estruturas administrativas temporárias.

Acrescente-se, ainda, que a imposição de criação de uma estrutura jurídica para o atendimento da administração indireta com vinculação estatutária (autarquias e fundações públicas), trará mais despesas aos já combalidos cofres públicos estaduais, sem que nenhuma das estruturas, especialmente por seus governantes, tenha identificado esta necessidade. Ao contrário, o que se colhe pelo país é a necessidade cada vez maior de evitar posicionamentos contraditórios dentro da estrutura jurídica estatal.

Concluindo, o que a PEC 80/2015 pretende é alterar integralmente o sistema de representação judicial e consultoria jurídica dos entes federados, sem que qualquer ente tenha apontado a insuficiência da organização adotada pelo Constituinte Originário. Por isso, a par das inconstitucionalidades já apontadas, a pretensão contida na proposta também não atende aos critérios de conveniência e oportunidade.

Os princípios constitucionais atribuídos à Advocacia Púbica estadual de unicidade e exclusividade da representação judicial e da consultoria jurídica são, portanto, fundamentais para a boa administração pública. Mantê-los é bom para os estados e Distrito Federal.

Telmo Lemos Filho é procurador do estado do Rio Grande do Sul e 1º Vice-Presidente da Associação Nacional dos Procuradores dos estados e do Distrito Federal

Fonte: ConJur

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