
Fonte: Jornal O Popular
Especialista em direito constitucional e regulação afirma que posição das big techs, “quase próxima de Pôncio Pilatos”, de lavar as mãos em relação aos conteúdos, tem que ser revista

Advogado e professor de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Gustavo Binenbojm formou uma convicção ao longo de sua carreira, parte dela dedicada aos debates sobre o Marco Civil da Internet e, agora, ao projeto de lei (PL) das Fake News: “As plataformas precisam prestar contas à sociedade de maneira transparente sobre conteúdos que são impulsionados. A sociedade precisa saber o que é produto de uma interação livre e voluntária do usuário e o que é um conteúdo pago que interfere na agregação e na formação das preferências individuais, sob pena de que, se isso não for feito, gradualmente, as redes sociais é que vão determinar como as pessoas pensam e, a partir daí, como as pessoas vão tomar suas decisões.”
Binenbojm considera que o PL em tramitação na Câmara dos Deputados melhora o texto aprovado pelo Senado em 2020 e afirma que a proposta põe um fim na “ideologia da imunidade do intermediário”, posição de Pôncio Pilatos, diz, adotada pelas plataformas digitais de não se responsabilizarem pelos conteúdos publicados por terceiros.
Master of Laws pela Yale Law School e mestre e doutor em Direito Público pela UERJ e procurador do Rio de Janeiro, Binenbojm esteve nesta quarta-feira (3) em Goiânia onde participou do seminário Liberdade de Expressão, Fake News, Redes Sociais e as Dimensões da Advocacia Pública para Garantia da Governabilidade, promovido pelo Centro de Estudos Jurídicos da Procuradoria-Geral do Estado (PGE-GO).
O sr. acha que foi acertado o adiamento da votação do PL das Fake News, ou corre-se o risco de se perder o momento político para o debate?
Não acho que vai se perder o momento, porque esse assunto é tão atual e tão recorrente, que a sociedade me parece que vai continuar mobilizada. O que acho que houve foi uma percepção do relator de que deveria fazer ajustes no projeto e fazer novo arranjo político, um reagrupamento de forças para tentar aprovar o projeto. Acho que é mais uma retirada estratégica para uma reinserção num futuro próximo.
O sr. tem afirmado que o projeto foi melhorado em relação ao que foi aprovado pelo Senado. O que melhorou?
Por exemplo, a discussão sobre se deve ou não haver um conselho de comunicação, que dite regras para o funcionamento da regulação privada, da autorregulação das big techs. A composição desse conselho, a forma como os seus membros serão nomeados, isso me parece que foi discutido de maneira muito precipitada no Senado. Agora, se discute se os parlamentares devem ou não ter uma extensão da sua imunidade nas redes sociais. A discussão sobre a necessidade ou não da criação de um ente regulador, como uma agência autônoma. A remuneração dos produtores de conteúdo jornalístico profissional, que me parece um tema importante, e que também não constou do PL do Senado. E, finalmente, como viabilizar a fiscalização e o sancionamento das plataformas que não cumprirem as regras sobre o chamado dever de cuidado em relação ao conteúdos.
O que é o dever de cuidado?
Até aqui, e até aqui eu me refiro à vigência do Marco Civil da internet no Brasil, as plataformas se valeram de uma ideologia de imunidade, de intermediação. Ela está numa posição de quase próxima de Pôncio Pilatos, ou seja, lavavam suas mãos em relação aos conteúdos postados por terceiros. As exceções abertas pelo artigo 19 do Marco Civil da Internet eram apenas as questões ligadas ao uso de material pornográfico de vingança, quando alguém gravava uma outra pessoa numa situação de sexualidade para extorsão. Ou uso de direitos autorais em violação. E, ainda assim, a plataforma tinha que ser notificada judicialmente para retirar esse conteúdo. Salvo essas duas situações, as plataformas só seriam responsabilizadas se recebessem uma ordem judicial e não a cumprissem. O que é uma coisa óbvia, porque se alguém não cumpre uma ordem judicial, comete um crime de desobediência. Então, o PL rompe com essa lógica e passa a prever que as plataformas têm um dever geral de cuidado sobre o conteúdo que nela circula, ainda que postado por terceiros. Se esse conteúdo violar direitos das crianças e dos adolescentes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, ou seja conteúdos previstos na lei como de proteção para as pessoas em formação, crianças e adolescentes, as plataformas têm que agir de ofício. Têm o dever de vigilância que, independentemente de serem notificadas, e se não o fizerem estarão agindo por omissão, pois estarão violando a lei. No que se refere a outros conteúdos ilícitos, sendo notificadas para tomarem providência e não tomando, podem ser responsabilizadas.
Nesse caso, quem notifica?
Qualquer interessado, governo, um cidadão, uma empresa, uma organização não governamental, que sofra um dano decorrente de um conteúdo ilícito postado numa rede social, pode notificar e tem o direito a que a plataforma responda se aquele conteúdo é lícito ou ilícito e por que vai mantê-lo ou por que vai retirar aquele conteúdo.
Muda-se então a concepção que teve o Marco Civil da internet, que vem da ideia de neutralidade das redes?
Perfeitamente. As redes sempre propagaram a ideia de que atuam de maneira neutra em relação a conteúdos postados por terceiros. Ou seja, que elas não interferem positiva ou negativamente nesses conteúdos. Isso não é verdade. Primeiro, porque elas fazem uma curadoria desse conteúdo. A chamada moderação de conteúdo nada mais é, de acordo com os termos e condições de uso, escolher os conteúdos que serão eliminados e, consequentemente, os conteúdos que serão enfatizados. Isso já é uma interferência na circulação e no destaque na atenção dada às informações. Segundo, o que se vê, o que se lê, o que se ouve nas redes sociais não é algo aleatório. É algo que resulta de algoritmos muito sofisticados que são programados para, em relação a cada usuário, maximizar o tempo de uso desse usuário. Ou seja, é um algoritmo que capta, no seu comportamento nas redes, seu padrão de comportamento para descobrir as suas preferências e aumentar o seu tempo de uso, para aumentar os lucros obtidos por aquela rede social. Isso significa uma espécie de programação algorítmica. As redes sociais interferem no conteúdo que é visto por cada um de maneira diferente. E, finalmente, como as plataformas vendem conteúdos impulsionados, o impulsionamento é uma das formas pelas quais você é levado a ver mais alguns conteúdos e, consequentemente, não ter acesso a outros. E esses conteúdos muitas vezes contêm campanhas de desinformação, de incitação ao ódio, à violência, conteúdos contrários à saúde pública, à democracia, à própria liberdade de expressão. A última foi aos conteúdos contrários ao próprio PL das fake news. As plataformas têm que prestar contas à sociedade de maneira transparente. Que conteúdos são impulsionados? A sociedade precisa saber o que é produto de uma interação livre e voluntária dos usuários e o que é um conteúdo pago que interfere na agregação e na formação das preferências individuais, sob pena de que, se isso não for feito, gradualmente, as redes sociais é que vão determinar como as pessoas pensam, e, a partir daí, como as pessoas vão tomar as suas decisões.
Sendo assim, as plataformas, as big techs serão tão responsabilizadas quanto são a imprensa e a mídia tradicional?
Acho que esse projeto de lei caminha no sentido de uma possível equiparação em termos de responsabilização civil das empresas de tecnologia, que detêm as plataformas digitais e os serviços de mensagens privadas, e os veículos de comunicação social tradicionais. Não que as atividades, e esse é um debate que no parlamento é muito intenso, sejam idênticas. A equiparação jurídica para fins de responsabilidade não precisa ser fundada numa atividade idêntica. Precisa ser fundada numa relevância dos efeitos. E os efeitos são bem parecidos. Quando produzo um dano a alguém, porque eu jornalista, ou responsável editorial por uma empresa de comunicação, sabidamente veicula uma notícia fraudulenta ou falsa, porque quero produzir esse dano ou porque eu faço uma apuração imprudente ou negligente, a empresa é responsabilizada porque ela produziu um dano contra esse alguém por dolo, por intenção ou por culpa. Quando a rede social permite que uma notícia fraudulenta produza dano à sociedade ou a um grupo específico ou uma pessoa específica, notificada a tanto e não toma nenhuma providência, ou o algoritmo dela não retira essa notícia do ar, de alguma forma, ela se torna corresponsável, responsável solidária por esse dano causado a essa pessoa. O que o projeto de lei está dizendo? Se o conteúdo é ilícito, você é notificado e sabe que o conteúdo é lícito, e você não toma nenhuma providência para removê-lo, você é corresponsável pelo dano causado por esse conteúdo ilícito.
Os extremistas estão usando esse regramento para dizer que vai haver uma censura à liberdade de expressão. O que é liberdade de expressão e o que não é liberdade de expressão?
Primeiro, a liberdade de expressão em qualquer democracia é sempre a regra. E os seus limites são sempre a exceção. Em nenhuma democracia do mundo ocidental a liberdade de expressão pode ser tida como um direito absoluto, na medida em que a democracia pressupõe algumas regras do jogo para que ela fique de pé, para que ela funcione de maneira saudável. Começa no Direito Penal, quando se pensa que historicamente são consolidados tipos penais, como a injúria, calúnia, difamação, como crime de racismo, hoje equiparado no Brasil a injúria racial, e o Supremo equiparou isso aos crimes de homofobia e transfobia. Há uma série de experiências históricas que determinam que, no campo do direito penal e também no campo do direito civil, há abusos de direito que configuram atos ilícitos penais ou civis, que não são protegidos pelo princípio da liberdade de expressão. Isso nos leva a imaginar que é também condicionalmente possível, senão até exigível, que haja algum grau de regulação dos veículos de comunicação, que já ocorre, e, obviamente, das redes sociais, que é o que se está buscando agora com esse PL, que prefiro chamar de PL à garantia da integridade dos sistemas de informação.
O sr. é a favor da regulação, mas contrário à criação de um órgão regulador. Por quê?
Porque acho que um órgão regulador traz algumas vantagens em alguns setores e uma série de desvantagens agregadas a isso. A vantagem que um ente regulador traz para setores, por exemplo, de infraestrutura, telecomunicações, transportes, rodovias, é você ter uma análise de temas muito técnicos, que envolvem muitas vezes cálculos de reequilíbrio econômico financeiro de contratos e coisas como a análise sobre as especificidades técnicas de editais. Por exemplo, qual é o modelo de 5G que o Brasil vai adotar na área de telecomunicações? O ideal é uma resposta técnica que não responda à lógica imediata da política partidária eleitoral. Idealmente, a isso não se deve sujeitar tais decisões. Agora, quando se trata de uma matéria tão delicada como a liberdade de expressão, o que a gente deve pensar é: que poder extraordinário é esse que uma agência reguladora terá de editar normas a qualquer tempo, construindo conceitos amplos como indeterminados, como desinformação, fake news e outros mais que a lei vai estabelecer e tendo seus dirigentes nomeados todos eles por um mesmo governo, qualquer que seja o governo, de direita ou de esquerda. Me parece que nessa análise de perdas e ganhos, parece mais positivo que o país faça uma opção por fazer a regulação por lei e deixar que o enforcement da lei, a execução da lei, o seu cumprimento, seja garantido pelo Poder Judiciário.
Em que campo isso se dá no Brasil?
O Brasil tem uma experiência razoavelmente bem sucedida, muito bem sucedida nos últimos anos, em que as normas eleitorais são aplicadas pela Justiça Eleitoral. A Justiça Eleitoral, no campo em que o Brasil tem normas da internet, dos meios de comunicação, em que a Justiça Eleitoral faz o papel de uma comissão eleitoral e com um poder eleitoral permanente, membros vitalícios, têm seus fiscais. Acho isso uma solução preferível em matéria de liberdade de expressão à criação de mais uma agência reguladora que talvez possa ser facilmente capturada ou pelo poder político ou pelo poder econômico.
O sr. está dizendo que esse assunto ficaria sob a alçada da Justiça Eleitoral?
Não, Não, Não. De forma nenhuma. O que o que apontei foi um exemplo de como existe, no campo eleitoral, um braço da Justiça, que é a Justiça Eleitoral, que aplica a lei eleitoral. Ou seja, essa nova lei da internet vai ser aplicada toda vez que alguém tiver alguma dúvida, alguma questão num litígio, o Poder Judiciário, competente em cada caso, vai ser provocado para decidir a questão.
Como ficou na lei a remuneração dos veículos produtores de conteúdo profissional? Isso está claro, ou ainda é uma questão a ser mais bem pensada?
Acho que se formou um consenso no na Câmara dos Deputados. Não consta do PL que foi aprovado no Senado. Portanto, essa é mais uma matéria, em razão da qual o projeto de lei, se for assim aprovado na Câmara, terá que ser devolvido ao Senado, para uma nova rodada de discussão e votação. Mas essa é uma matéria a respeito da qual na Câmara há um consenso, o consenso de que deve haver uma remuneração pelo uso de informações produzidas por empresas jornalísticas profissionais pelas redes sociais. O conceito de empresa jornalística profissional no Brasil é usado na Constituição, regulamentado por lei, que são organizações com fins lucrativos que produzem notícias e críticas jornalísticas de forma profissional. Então, acho que isso já é um avanço, porque o modelo de jornalismo profissional está em crise e há uma apropriação indébita, uma espécie de expropriação do conteúdo produzido pelas empresas jornalísticas, pelas redes sociais. Agora, o que não está claro são os critérios de quantificação que ficam abertos a uma espécie de regulamentação, ou um acordo coletivo, como se fosse na Justiça do Trabalho, seriam os acordos coletivos entre as empresas ou entre representantes sindicais de categorias econômicas, que poderiam definir anualmente ou periodicamente, os valores que seriam pagos a título de remuneração. O fato é que também não está claro, se não houver acordo, como isso vai ser decidido. E a regra geral é que, se não houver acordo, a questão vai ser judicializada.
Uma lei, assim como a política, é o consenso possível. Imunidade parlamentar para os parlamentares nas redes sociais faz parte desse acordo possível no que diz respeito ao PL das Fake News?
Acho que é um elemento necessário do pacote para que o projeto de lei seja aprovado. Mas não é um bicho de sete cabeças, a meu ver. Primeiro, porque já é uma norma constitucional. Então, para muitos, é inevitável que a imunidade por opiniões, palavras e votos dos parlamentares, deputados federais e senadores já se aplique às redes sociais. Segundo, que ela vai se aplicar, mesmo que seja prevista no projeto de lei, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Não se imagina de outra forma, que é o intérprete último da Constituição. Então, o que o Supremo tem dito? Que as redes sociais, os parlamentares, não têm o direito absoluto a essa imunidade, que a imunidade não se aplica em casos de crimes de ódio, de crimes contra o Estado democrático de Direito. Então, com essas ressalvas, também nas redes sociais, os parlamentares não teriam direito a imunidade absoluta.
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