Por Carla Von Bentzen, Procuradora do Estado de Goiás

O Brasil foi o país que mais recebeu escravizados (aproximadamente 4,8 milhões, quarenta por cento daqueles que desembarcaram nas Américas) no período em que aquela desumanização era legalizada e institucionalizada. Uma vez abolida a escravização, não houve uma política pública capaz de absorver a mão de obra, que foi forçada a sair do seu território de origem, da sua cultura, teve rompidos seus laços familiares e foi submetida a um doloroso processo de subjugação.

Ao contrário deste processo, generosas políticas foram concretizadas para facilitar a vinda de imigrantes europeus e asiáticos ao país, sob a justificativa de que o processo de desenvolvimento seria efetivado somente se houvesse o embranquecimento da população. Várias foram as tentativas de justificar esse período sombrio de dominação, admitindo-se que haveria uma razão científica para uma pretensa inferioridade entre brancos, negros e não brancos.

Por consequência, a ação iniciada há cinco séculos (início da escravização) e a omissão havida há mais de um século reverberam até hoje, pois a inamovibilidade que atinge a população afrodescendente é escancarada a cada pesquisa.

Embora seja a maioria da população brasileira, com o maior contingente de população negra fora da África, o país patina em políticas específicas a essa parcela da população, a qual mais de 80% é dependente do sistema público de saúde.

Desigualdades repercutem na renda média, pois a população branca recebe 40% a mais do que a afrodescendente (cuja desigualdade é ainda maior quando se trata de mulheres negras) e a taxa de desemprego também é maior. Os níveis de analfabetismo (9,1%) e pobreza (22%) são cíclicos a essa parcela específica da população. A participação democrática, por sua vez, é ínfima. A presença de afrodescendentes na estrutura institucional jurídica brasileira é vergonhosa.

Segundo pesquisa apresentada pelo Conselho Nacional de Justiça, o número de juízes afrodescendentes é de 21%. Nos Tribunais, se para as mulheres brancas o teto é de vidro, para as mulheres negras o teto é de concreto: inexiste a possibilidade de se alçar voos maiores, já que existem apenas 45 desembargadoras negras em todo o país, ao tempo da realização daquela pesquisa.

Quando finalmente se realizam políticas de reparação histórica, diante de cinco séculos de completa inanição, a insurgência a sua adoção é desonesta. Quando se iniciou política de ação afirmativa, para reserva de vagas para o ingresso em universidades federais, houve o questionamento de sua constitucionalidade e a discussão sobre a sua real necessidade.

Como visto, inexiste sensibilidade quanto à falta de acesso a parcela racialmente localizada da população. No mês em que se marca como combate à discriminação racial, o mínimo que devemos à nossa democracia é uma reparação histórica concreta.

O Estatuto da Igualdade Racial e demais convenções internacionais ratificadas pelo país já ditam o caminho da transformação estrutural para quem sente na pele os efeitos da negligência. Basta atitude e honestidade para segui-los.

Fonte: Jornal O Popular

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