As recentes operações policiais contra irregularidades na aquisição de Transportes e Logísitnicsaumos para combater a pandemia revelaram que governadores têm dispensado procedimentos licitatórios à revelia das Procuradorias- Gerais dos Estados (PGEs). Levantamento feito pelo Valor mostrou que, em pelo menos quatro casos, os órgãos responsáveis pelo assessoramento jurídico do Poder Executivo não foram previamente consultados. 

Quando o Brasil entrou em estado de calamidade pública em razão da covid-19, em março, as PGEs elaboraram orientações genéricas sobre as hipóteses legais para a dispensa de licitação, listando os critérios que devem ser observados, como a apresentação de justificativas plausíveis e estimativas de preços. A ideia era agilizar as aquisições, diante da urgência exigida pela pandemia. Contudo, na prática, governos têm usado essas diretrizes como carta branca para firmar contratos diretos com os fornecedores, abrindo margem para fraudes. 

A consequência desses atos veio na forma do “Covidão”, apelido dado às operações da Polícia Federal (PF) para desarticular irregularidades na compra de respiradores, máscaras e testes rápidos, entre outros produtos, pelos governos estaduais. As investigações já atingem oito Estados e têm sido utilizadas politicamente pelo presidente Jair Bolsonaro para atribuir o peso da crise aos gestores locais. 

O alvo mais recente foi a Secretaria de Saúde do Amazonas, que comprou, de uma empresa de comercialização de vinhos, ventiladores pulmonares por um preço 133% maior do que o praticado no mercado. A titular da pasta, Simone Papaiz, chegou a ser presa em 30 de junho, mas foi solta dias depois. A PGE confirma não ter sido ouvida para orientações jurídicas prévias. 

Como não agiu para evitar a irregularidade, o governo agora tenta reduzir danos. Em nota, informou que a Controladoria-Geral do Estado (CGE) está auditando todos os contratos emergenciais relativos à pandemia. Além disso, baixou decreto para que, daqui para frente, os pagamentos só possam ser efetivados após parecer da Procuradoria. 

Vinte dias antes da operação no Amazonas, caso semelhante ocorreu no Pará, resultando no bloqueio de R$ 25 milhões em bens do governador, Helder Barbalho (MDB), por indícios de superfaturamento de 86,6% na compra de 400 respiradores, sem licitação. A empresa não tinha registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), recebeu pagamento antecipado e entregou aparelhos inadequados ao tratamento da covid-19. 

A PGE do Pará afirma que, “em razão da urgência” para adquirir os ventiladores pulmonares, a Secretaria de Saúde não submeteu o contrato à sua avaliação anterior. Em nota, afirmou que “já está fazendo a análise do processo, visando sanar eventuais inconformidades, caso seja necessário, e que, por iniciativa do próprio governo do Estado, todo o recurso adiantado à empresa foi ressarcido aos cofres públicos”. Procurado, o governo do Pará não se manifestou. 

Em Brasília, a Operação Falso Negativo, de 2 de julho, também mirou possível superfaturamento na compra de testes rápidos para a detecção da doença. A suspeita de irregularidade poderia ter sido evitada se a Procuradoria-Geral do Distrito Federal (PGDF) tivesse sido consultada especificamente sobre o caso, o que não ocorreu. Procurado, o governo afirmou que o gasto foi condizente com os preços do mercado e que levou em conta um parecer referencial do órgão, assinado mais de dois meses antes – quando o Brasil contabilizava 18 mortes, nenhuma delas no DF. 

O parecer esclarece que, de fato, o gestor não precisa enviar um a um dos processos para aval da PGDF, exceto se houver dúvida de ordem jurídica. Por outro lado, destaca que o texto não dá “autorização irrestrita para a aquisição desmesurada e irracional de bens e serviços”. Ou seja, o governo está sujeito a responsabilização em caso de excessos. 

O presidente da Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do DF (Anape), Vicente Braga, afirma que, embora as diretrizes genéricas não sejam ilegais, os abusos atribuídos pelo Ministério Público (MP) aos gestores estaduais escancaram a necessidade de participação mais ativa das PGEs em cada processo. Segundo ele, são análises simples, que não prejudicariam a pressa em se obter insumos para enfrentar a pandemia – pelo contrário, identificariam se as empresas possuem capacidade técnica, se praticam preços justos e se têm capital social compatível com os serviços oferecidos. 

“Houve contratos em que o primeiro ato de um processo administrativo foi a ordem de pagamento, o que não pode existir. Com o devido cuidado pelas Procuradorias, que são a primeira trincheira do combate à corrupção, teríamos evitado um prejuízo enorme para a sociedade, causado por decisões não republicanas que usaram a pandemia como desculpa”, diz. 

No Rio de Janeiro, por exemplo, a PGE afirma não ter sido consultada sobre a compra de 200 mil cestas básicas para o Mutirão Humanitário, programa de assistência social para amenizar os efeitos da crise. Dois dirigentes da Fundação Leão XIII, órgão submetido à vice-governadoria, foram denunciados pelo MP por fraude nos contratos. 

O ordenamento jurídico “uminense conta ainda com um decreto que obriga a revisão, pela PGE, de “processos que impliquem em impacto orçamentário-financeiro igual ou superior a R$ 10 milhões”, como foi o caso. Contudo, o órgão afirma que o “checklist” dos critérios para contratações emergenciais foi ignorado. Em resposta, o governo diz ter seguido os parâmetros legais e alega que auditoria da CGE descartou a hipótese de irregularidade. 

Fonte: Valor

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