Por Alexandre Felix Gross, Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB é Procurador do Estado

Em um cenário de escassez, a sociedade é colocada diante de decisões trágicas. Esse é o cenário no qual nos encontramos em relação às vacinas para Covid-19. Quem deve ter preferência na distribuição das doses? Quais critérios devem ser adotados para definir a preferência? Quem terá a oportunidade de ser imunizado antes e, assim, ter maiores chances de sobreviver?

Não há respostas simples para problemas complexos. Mas existe uma ideia que deve orientar o debate: os critérios adotados para solucionar as decisões trágicas devem respeitar os valores e acordos morais que compartilhamos enquanto sociedade.

Esses valores estão na Constituição de 1988, que afirma que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, garantido por meio de políticas públicas de acesso universal e igualitário, e que a República Federativa do Brasil tem como objetivo a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Foram esses valores que inspiraram a construção de um “novo Brasil” em 1988, sobre os escombros de uma ditadura militar que durante 21 anos nos negou a democracia.

Os demais países democráticos compartilham dos mesmos valores. A grande maioria deles adotou critérios objetivos para distribuir vacinas: priorizar os que têm maiores chances de desenvolver sintomas graves e os que têm maior exposição ao vírus, cuja força de trabalho é essencial no combate à doença (profissionais de saúde). São critérios razoáveis, justificáveis em uma sociedade que preza pela igualdade e renega o privilégio injustificado. Nenhum desses países adotou como critério a capacidade econômica de comprar vacinas no mercado privado, e os principais fabricantes, aqueles que produzem os imunizantes mais confiáveis e aprovados pelas principais agências reguladoras, atualmente só negociam com o setor público.

Hoje o mercado de vacinas sofre com intensa escassez e a inclusão do ator privado acabaria inflacionando o preço dos imunizantes, penalizando toda a sociedade brasileira. E isto em razão da mais elementar “lei” econômica, a da oferta e demanda. Enquanto para a iniciativa privada o céu é o limite, o Poder Público é constrangido por limites legais e orçamentários que poderiam retardar ou inviabilizar a compra de vacinas. No contexto global, esse efeito fica ainda mais evidente. Se os países ricos liberassem irrestritamente a compra privada de vacinas, os países mais pobres, incluindo o Brasil, certamente ficariam sem doses.

O critério econômico, ter ou não ter dinheiro, não pode, diante dos valores que compartilhamos enquanto uma sociedade democrática, liberal e igualitária, definir, neste momento, quem recebe ou não a vacina. A vacinação privada, claro, deve ser liberada após a vacinação dos grupos prioritários, quando a situação de escassez não for tão trágica quanto é no momento. A partir daí o papel da iniciativa privada será bem-vindo.

Fonte: Jornal O Popular

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