Confira artigo do procurador do Estado Cláudio Grande Júnior sobre terras devolutas, publicado no portal Direito Agrário.
Terras devolutas: TRF4 mantém propriedade de agricultora em faixa de fronteira reivindicada pela União
“Um imóvel localizado em faixa de fronteira, no município de Bom Jesus, região oeste de Santa Catarina, foi declarado de propriedade de sua moradora por usucapião. A decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) foi tomada na última semana, confirmando sentença e negando recurso da União, que alegava ser o local terra devoluta e não passível de usucapião.
A agricultora ajuizou a ação em 2008. Ela argumentava que detinha a posse mansa e pacífica do terreno, de pouco mais de quatro mil metros quadrados, há mais de 20 anos. A Justiça Federal de Chapecó julgou o pedido procedente e declarou o domínio da autora sobre o imóvel.
A União recorreu ao tribunal alegando que a área é bem público, está em faixa de fronteira e não seria suscetível de aquisição por usucapião. Segundo a legislação, deve ser considerada faixa de fronteira a região de 150 km de largura ao longo das fronteiras terrestres do Brasil.
Entretanto, segundo a relatora da ação, desembargadora federal Vivian Josete Pantaleão Caminha, a simples localização em faixa de fronteira não impede que o imóvel possa sofrer os efeitos da prescrição aquisitiva. ‘Cabe à União o ônus de provar o caráter público das terras pleiteadas, o que não ocorreu’, avaliou a magistrada.
Vivian ressaltou que a possibilidade de aquisição de imóveis por usucapião constitui a regra no Direito Brasileiro. “Tratando-se, no caso, de área rural de pequenas dimensões e destinada à produção agrícola, situada entre outras propriedades privadas já ocupadas, não se pode presumir que as terras em questão sejam indispensáveis à defesa das fronteiras ou possam implicar algum risco à segurança nacional”, observou a desembargadora.
Por fim, a magistrada destacou que a ocupação das áreas de fronteira pelos civis brasileiros configura eficaz forma de ocupação e segurança, ainda mais se consideradas as grandes dimensões das divisas entre o território brasileiro e o dos países vizinhos.
Terra devoluta
Terra devolutas são terras públicas sem destinação pelo poder público e que em nenhum momento integraram o patrimônio de um particular, ainda que estejam irregularmente sob sua posse. O termo “devoluta” relaciona-se ao conceito de terra devolvida ou a ser devolvida ao Estado.
Conforme o Decreto-Lei nº 9.760/1946, são devolutas, na faixa da fronteira, nos territórios federais e no Distrito Federal, as terras que, não sendo próprias nem aplicadas a algum uso público federal, estadual, territorial ou municipal, não se incorporaram ao domínio privado”.
Fonte: TRF4, 05/04/2016.
Comentário de DireitoAgrário.com:
por Cláudio Grande Júnior, Mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Procurador do Estado de Goiás.
Introdução
Recentemente, na Apelação/Reexame Necessário n.º 5006949-74.2013.4.04.7202/SC, o TRF da 4ª Região reconheceu a usucapião de uma agricultora em terras localizadas na faixa de fronteira, entendendo que o fato de o imóvel estar localizado nessa faixa não é, por si só, suficiente para caracterizá-lo como bem de domínio da União, cabendo a esta o ônus de provar que as terras são devolutas.
Trata-se de um problema bem particular do direito brasileiro, perpassando os ramos constitucional, administrativo e civil e adentrando, sobretudo, no direito agrário. Compreende-se este como o conjunto de normas que, tendo em vista o desenvolvimento e a dignidade da pessoa humana, regula as relações decorrentes das atividades agrárias. Conquanto atualmente a terra tenha deixado de ser o denominador comum das atividades agrárias, não há como negar que a esmagadora maioria delas ainda precisa ser explorada tendo a terra como sustentáculo. E a questão da dominialidade do imóvel ser pública ou privada continua a ser uma determinante, no Brasil, no que diz respeito ao acesso dos indivíduos à terra, para exploração de atividades agrárias.
Domínio Territorial na Faixa de Fronteira
O primeiro ponto que se sobressai do acórdão é o de que o simples fato da porção de terras se localizar na faixa de fronteira não é suficiente para caracterizá-lo como bem de domínio da União. O § 2º do art. 20 da Constituição Federal designa “faixa de fronteira” aquela de até cento e cinquenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, considerada fundamental para defesa do território nacional, cuja ocupação e utilização devem ser reguladas em lei. Contudo, isso não significa que toda a faixa de fronteira seja um enorme bem público federal, até porque ela não é arrolada como bem da União nos incisos do caput do art. 20 da Constituição. Se fosse, seria despicienda a inclusão, no rol ali constante, das terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras e das ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países, porque a zona de fronteira automaticamente compreenderia todos esses bens. Desse modo, para conseguir obstar as pretensões usucapiendas de alguém, na faixa de fronteira, a União precisa comprovar sua dominialidade sobre as respectivas terras ou conseguir demonstrar que elas são devolutas.
Demonstração da Existência de Terras Devolutas
Desagua-se, assim, no segundo ponto de destaque do acórdão: o de que cabe à pessoa jurídica de direito público o ônus da prova do domínio público, enquanto fato obstativo da pretensão invocada por outrem numa ação de usucapião. Em se tratando de terras devolutas, essa comprovação da dominialidade é uma das questões mais tormentosas e menos esclarecidas do direito brasileiro. A decisão considerou que a inexistência de registro imobiliário sobre a extensão de terras que se pretende usucapir não autoriza presumir que sejam terras devolutas. Para tanto, invocou outros precedentes do TRF4 e um do STJ. Na verdade, há vários julgados do STJ e mesmo do STF nesse sentido, mas em nenhum fica completamente bem explicada a razão pela qual da inexistência de registro imobiliário não se pode concluir que a terra seja devoluta. São feitas remissões a julgados mais antigos que chegam a admitir a existência, ao lado das terras devolutas, de terras res nullis, ou seja, imóveis de ninguém (ex. RE 75.459-SP, Rel. Djaci Falcão, julgado aos 27/04/1973), algo completamente sem sentido se confrontado ao estudo detalhado do histórico das terras no Brasil. Não há, entre nós, terras de ninguém, porque originalmente todas as nossas terras pertenceram ao Poder Público e continuam pertencendo a ele as terras que não foram transferidas para o domínio privado. Isso não é exclusividade do direito brasileiro. Observa-se o mesmo quadro nos Estados Unidos da América, onde muitas terras ao oeste continuam públicas. Exemplificando, estas constituíam 89,22% da superfície terrestre do Alasca em 1995.[1] A dificuldade no Brasil, muito maior do que nos EUA, é a de encontrar o ato ou fato juridicamente reconhecido como de transferência da terra do domínio público para o particular.
Realmente não é possível afirmar que a gleba seja devoluta apenas pelo fato dela se localizar em terras sem registro imobiliário. Isso representa um significativo indício de que as terras podem ser devolutas, entretanto não constitui demonstração e, muito menos, prova cabal nesse sentido. Isso porque a obrigatoriedade do registro imobiliário para todas as hipóteses de transferência da propriedade só se consolidou definitivamente com o Código Civil de 1916, recebendo normatização mais eficaz sobre o necessário encadeamento dos registros apenas com o Decreto n.º 18.542, de 1928. Muito antes, entretanto, os arts. 22 ao 27 do Regulamento da Lei de Terras do Império (Decreto n.º 1.318, de 1854) reconheceram o pleno domínio privado sobre imóveis a uma série de situações nas quais os particulares tinham, a rigor, meras posses deles (GRANDE JÚNIOR, 2015, p. 103-107). Tomando os atuais limites territoriais do Estado de Goiás como exemplo, constata-se que os mencionados dispositivos do Regulamento Imperial surtiram efeito sobre aproximadamente 2/3 das terras nas quais há atualmente interesses para a prática de atividades agrárias (GRANDE JÚNIOR, 2013, p. 19-27). O problema é que, na época, vigiam as Ordenações Filipinas, de 1603, como diploma básico do ordenamento jurídico brasileiro, ainda prevendo a tradição como forma de transferência do domínio imobiliário, tendo ao seu lado a Lei Orçamentária n.º 317, de 1843, e o Decreto n.º 482, de 1846, que debilmente se restringiam a disciplinar um incipiente registro de hipotecas. A Lei n.º 1.237, de 1864, regulamentada pelo Decreto n.º 3.453, de 1865, disciplinou a transcrição das transmissões entre vivos de bens suscetíveis de hipotecas, porém de forma incompleta, “já que não previa a transcrição das transmissões causa mortis e de atos judiciais, impedindo a formação de uma cadeia de titularidade nos livros registrais” (VIEIRA, 2009, p. 16). Falha que persistiu na República, com o Decreto n.º 169-A, de 1890, regulamentado pelo Decreto n.º 370, de 1890.
Pode perfeitamente a terra ter sido admitida como domínio particular por essa legislação do século XIX e, por uma variedade de motivos, nunca ter sido a propriedade privada levada ao registro imobiliário após a vigência do Código Civil de 1916. Principalmente se o imóvel tiver sido abandonado pelos proprietários privados originalmente reconhecidos pelo Império e apossado por outras pessoas, o que constitui exatamente a hipótese de usucapião. Na verdade, a situação é tão grave que não permite nem mesmo a identificação de terras dadas em sesmarias, mediante apenas consulta ao Cartório de Registros de Imóveis. Pode, assim, por exemplo, acontecer até mesmo de a terra ter sido concedia em sesmaria, devidamente demarcada, medida, confirmada, cultivada e não caída em comisso até o momento do definitivo reconhecimento da propriedade privada absoluta pelo arts. 22 ao 27 do Regulamento da Lei de Terras do Império, porém, ainda assim, não se encontrar registro imobiliário dela no Cartório competente. Mesmo nos casos em que se fez registro imobiliário nas primeiras décadas de vigência do Código Civil de 1916, não é fácil hoje localizar tais registros se eles não tiveram sequencia em registros subsequentes mais recentes. Não raro, os Cartórios emitem certidões de inexistência de registro em decorrência de falhas nas buscas desses antigos registros.
Por outro lado, cabia ao Poder Público, o quanto antes, logo nos primeiros anos de vigência da legislação de terras do Império, identificar e demarcar as terras naquele momento não possuídas por particulares e não aplicadas a qualquer uso público, as chamadas “terras devolutas”. Mas como se sabe, não foi isso o que aconteceu (GRANDE JÚNIOR, 2015, p. 123) e herdamos, assim, um quadro de desconhecimento da localização e extensão das terras devolutas em meio às glebas que foram reconhecidas como particulares sem “precisão de revalidação, nem de legitimação, nem de novos títulos” (art. 23 do Regulamento da Lei de Terras do Império) e sem a organização de um sistema de registro imobiliário, lembrando que o registro paroquial era um registro apenas de posses (art. 91 do mesmo Regulamento), não de propriedades. Daí, embora se possa discordar do restante da fundamentação do acórdão proferido na Apelação Cível n.° 2008.002823-9 do Rio Grande do Norte, há perfeitamente razão no seguinte parágrafo do voto proferido pelo Juiz Ricardo Tinoco de Góes, convocado pelo TJRN para relatar o caso:
Impor ao particular o ônus de provar que as terras não são públicas seria injusto, responsabilizando-o pela inércia daquele que, no passado, tardou a organizar o serviço registral, bem como não conseguiu se documentar, para hoje promover, com segurança, a separação das terras públicas das particulares.
Conclusão
Somente tendo em vista todas essas questões históricas de direito, consegue-se compreender porque não basta a apresentação de uma certidão cartorária de inexistência de registro imobiliário para se concluir que determinada porção de terras é devoluta. São imprescindíveis também diligências para a localização e verificação de títulos de domínio e de transferência de domínio reconhecidos como válidos pela legislação anterior ao Código Civil de 1916.
Fonte: Direito Agrário
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