O procurador de Estado Rodrigo Resende aponta os desafios do sistema de saúde brasileiro e da atual organização e colaboração entre os entes federativos na área. Segundo ele, a adoção do sistema de responsabilização compartilhada no país foi essencial por ser uma das formas de diminuir desigualdades.
Conforme diz, o desafio é que este sistema, que é tão generoso em conferir direitos, esteja dotado de recursos compatíveis com suas largas competências, para que deixe de ocorrer o fenômeno da crise de sobrecarga. Resende salienta que o aumento da eficiência na gestão e solução do problema de subfinanciamento crônico são os principais desafios do sistema de saúde brasileiro.
O procurador de Estado defendeu, recentemente, a tese Relações interfederativas nas políticas públicas de saúde brasileiras: virtualidades e dificuldades – a sessão pública ocorreu na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Confira mais sobre o assunto:
De que forma a articulação interfederativa interfere na implementação de políticas públicas de saúde no Brasil?
Pode-se dizer que o SUS ainda está em construção, apesar de ter mais de duas décadas. A Lei Complementar 141, publicada há dois anos, regulamentou a Emenda Constitucional 29/00, sendo um produto recente dessa articulação interfederativa, tanto na parte de gestão quanto do financiamento do sistema de saúde. Por sua vez, o Programa Mais Médicos é um exemplo concreto desta articulação na parte de gestão do SUS, com a União adotando um papel de protagonismo na saúde básica, que pela Lei Federal 8.080/90, é uma competência predominantemente municipal.
Observa-se, por estes dois exemplos mais recentes, que este processo de concretização das políticas de saúde através do SUS depende essencialmente da forma como se dá o relacionamento interfederativo, que depende de uma constante articulação, manifestando-se tanto no momento do financiamento do SUS, quanto de sua gestão, entre outros momentos. No financiamento, por exemplo, a articulação ocorre na divisão de responsabilidades pela alocação de recursos no sistema de saúde. Na parte de gestão, por sua vez, ocorre através da alocação de recursos, humanos e materiais, para a execução das ações e serviços de saúde. Sem se falar de uma contínua necessidade dos entes federativos estabelecerem fluxos procedimentais para fazer encontros de contas, câmaras de compensação de valores, gestão conjunta de nosocômios, auferimento de recursos para dar consecução à políticas de saúde adotadas em nível nacional, entre tantos outros exemplos. Enfim, sem estes canais de interlocução interfederativa, não se conseguiria descentralizar a atenção à saúde num território tão grande e com tantas assimetrias como o brasileiro.
Quais são as principais dificuldades do sistema de saúde brasileiro diante da atual organização e colaboração entre os entes federativos?
Há desafios tanto no aumento da eficiência na gestão quanto na solução do problema de subfinanciamento crônico. Quanto à gestão, o SUS já passou por várias fases e observa-se uma clara evolução neste processo. Inicialmente, o SUS foi construído sob os auspícios de um modelo essencialmente municipal, imaginando-se que os municípios deveriam fornecer todos os insumos de saúde à população. Este paradigma é até satisfatório e eficaz na saúde básica, mas mostrou sinais claros de esgotamento na atenção à saúde de média e alta complexidade, que dependem de ganhos de escala incompatíveis com municípios de pequeno e médio porte.
Constatado esse quadro, adotaram-se os modelos de regionalização da saúde, através dos quais os Estados-membros assumiram responsabilidades de dividir os territórios estaduais em micro, meso e macrorregiões, de acordo com perfis territoriais e epidemiológicos identitários entre os entes municipais, tudo visando proporcionar economias de escala e ganhos de eficiência na gestão.
O terceiro momento é o do federalismo contratual (contractual federalism), através do qual os entes federados, sejam lá a que esfera pertencerem, articulam-se através de consórcios de saúde, que não necessariamente obedecem às divisões dos planos regionais outrora laborados pelos Estados-membros. Mas os Estados-membros continuam a ter um papel indutivo bastante importante na formação e manutenção destes consórcios, catalisando as relações interfederativas em prol de uma gestão mais eficiente das políticas de saúde. Devem desempenhá-lo de forma mais proativa, pois o número de consórcios públicos de saúde é ainda diminuto quando comparado com o número de entes federados no território nacional. Por sua vez, quanto à questão de subfinanciamento do SUS, os Estados-membros, o Distrito Federal e os municípios estão sem fôlego para alocar mais recursos para o SUS, pois já contam com outras vinculações orçamentárias, só havendo espaço através de maior eficiência arrecadatória e de recursos provenientes da União.
A União tem instrumentos para minimizar esse quadro de subfinanciamento?
A União, que hoje fica com 65% e 70% do produto de toda a arrecadação tributária nacional, tem uma margem maior para aliviar esse quadro de subfinanciamento do SUS. Mas perdeu uma excelente oportunidade de fazê-lo quando trabalhou pela não aprovação do aumento do percentual de cofinanciamento da saúde (para 10% de suas receitas), com isso mantendo a desvinculação de suas alocações do desempenho da arrecadação tributária. O resultado desse quadro é que, tanto quando contrastado com outras federações, quanto na comparação com outros países de cobertura universal, o Brasil é um dos países que menos recursos aloca à saúde pública.
De que modo essas relações beneficiam, especificamente, cada uma das esferas (União, Estado e municípios)?
A União conseguiu descentralizar a atenção à saúde que, até pouco antes da CF/88, estava concentrada no INAMPS e depois no SUDS, que antecedeu o SUS. Para os municípios, que são os entes federativos mais próximos do cidadão, é a oportunidade de prestarem aos cidadãos os insumos de saúde que são sensíveis à distância geográfica, ou seja, os atendimentos de saúde que dependem essencialmente de atendimento ambulatorial. Os Estados-membros, por sua vez, passam a desenvolver atividades mais relacionadas à coordenação, normatização e suplementação naqueles espaços não ocupados pelos entes municipais e/ou pela direção nacional do SUS. Todas as esferas federativas se beneficiam, pois o povo ganha e o Estado, na sua acepção lata, encontra sua legitimidade no povo.
Como organizar essa articulação para dar maior efetividade às políticas públicas de saúde no Brasil?
Há vários mecanismos e procedimentos para organizar essa articulação interfederativa, que vão desde as comissões intergestores bipartite e tripartite, até as conferências nacionais de saúde, passando também pelos Conselhos de Saúde nos âmbitos municipal, estadual, distrital e nacional. Enfim, são vários os foros de articulação. Nem por isso se pode dizer que esta articulação seja tranquila, notadamente porque a maior parte do tempo os entes regionais e locais estão de pires na mão, em busca de recursos federais para viabilizar suas políticas. É irreal imaginar que possa haver equilíbrio numa relação interfederativa marcada por tanta assimetria vertical.
De modo geral, levando em consideração os sistemas adotados em outros países, quais as vantagens da responsabilização compartilhada na Saúde?
A federação brasileira, assim como a indiana e a mexicana, tem três níveis governamentais, sem se falar do Distrito Federal. O Legislador Constituinte manifestou, em várias passagens do texto constitucional, uma preocupação com a redução das desigualdades regionais e com a justiça social, o que não parece demasiado num país com uma distribuição de renda tão desequilibrada e no qual as assimetrias regionais são tão acentuadas. A adoção desse sistema de responsabilização compartilhada foi essencial justamente devido a este quadro de grave injustiça social e de grandes desigualdades regionais que marcam a federação brasileira, sendo uma das formas de resgatar a dívida social acumulada pelos governos militares. O desafio é que este sistema, que é tão generoso em conferir direitos, esteja dotado de recursos compatíveis com suas largas competências, para que deixe de ocorrer o fenômeno da crise de sobrecarga, que vem ocorrendo há longa data.
Fonte: Portal Rota Jurídica
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